quarta-feira, 21 de maio de 2014

Virgem de Guadalupe e a Niña Blanca - La Santa Muerte

      Se eu fosse uma filosofa e me dedicasse a compor uma obra sem dúvida alguma o tema principal dela seria o sagrado. A filosofia assim com as religiões, creio, são véus para entender não só a vida como também a morte. São vias de reflexão da vida para compreender o que é morrer, o que é ser efêmero. Não tenho a menor dúvida que a minha pesquisa de mestrado foi uma terapia pessoal, digamos. Estudei um deus marcado pela morte e pelo renascimento, além disso, estudei um deus que empodera-se quando há um confronto entre os discursos dos homens e dos deuses. Lembrando que palavra é memória e memória é um tipo de manutenção de uma das vias da vida - tanto a palavra da razão, logos, como a palavra sagrada do aedo são batalhas diárias, cotidianas pela vida e, ao mesmo tempo, pela morte. 
          A palavra é uma dos caminhos de perpetuação e criação da vida, é sagrada no sentido de que gera uma alteridade entre os homens e impede o esquecimento completo.
       Pois bem, a experiência da realidade criada acerca da morte e, por conseguinte, da vida aqui no México é um delírio estético e existencial para mim. A efemeridade da vida se dá por cultos, por túmulos, por deidades e divindades que representam de uma forma muito intensa a morte, sem, entretanto, deixar de louvar à vida.
          No domingo fui à Catedral da Virgem de Guadalupe. Detalhe, não acreditem quando disserem A CATEDRAL porque nesse lugar tem um monte de Igrejas. Algumas foram feitas no lugar onde a virgem apareceu e, como o santuário é intensamente frequentado, fizeram outras e outras. Há dois tipos de arquitetura: catedrais muito antigas da época dos espanhóis e uma ultra-mega modernismo que é gigantesca. A história da construção do santuário é, como sempre, lamentável. Para impor o seu poder, os espanhóis construíram as catedrais em um santuário da deusa asteca Tonantzin  que está ligada à fecundidade e às plantas. Não que os Astecas fossem o povo mais santo do mundo, aliás, usavam do sacrifício humano não apenas como uma ferramenta de perpetuação dos paradigmas míticos, mas para a imposição de um tipo de medo que mantenha a ordem. 
       Mas, enfim, entre os colonizadores e os colonizados sempre opto pela verdade-histórica dos colonizados.
         Ir a esse templo é uma experiência incrível. Eu fui junto com uma amiga que ia acender uma vela para a Virgem de Guadalupe, pedindo um meio de campo da santa para curar a sua mãe que estava enferma. Bom, já que tava no rolê levei uma vela e acendi para deusa Tonantzin. Uma coisa assustadoramente incrível e linda que senti: o conforto que se tem no lugar. Apesar de toda arquitetura opressora do cristianismo mais da narrativa de conquista dos espanhóis - aquela estética, a Santa chegando e os índios pagando um pau e tal! Apesar disso, o lugar é delicioso! Tem umas cachoeiras lindas, jardins incríveis, cactos lindos, lindos e lindos. 
       Depois de ter feito o tour pelas igrejas, subir e descer escada, tirar foto em cavalinho com chapéu mexicano e fazer um chaveiro - sim, sou estrangeira e faço os rolês clichês também - fomos a um mercado só de bugiganga religiosa. Havia blusas da Virgem de Guadalupe na versão quase rock´n roll, havia imagens, imagens, imagens e imagens de santos, havia comida, havia terços em todas as versões: feito de madeira, de linha, para crianças, enfim, havia velas, havia venda de DVD pirata, claro (!), havia altares para a Virgem e havia um, um único altar para La Santa Muerte.
       Uau!
      Quando cheguei,  duas coisas me chamaram atenção concomitantemente: os dizeres do altar e um jovem casal que estava fazendo a iniciação de um dos seus filhos no culto à La Santa Muerte. A criança deveria ter um mês de vida, estava no colo do pai que encontrava-se em um vórtice temporal. Qualquer circunstância da vida alheia; o barulho das vendas, os passos das pessoas e a curiosidade de quem rende o olhar ao mistério não podiam esbarrar nele. Estava profundamente ensimesmado, mas não na soledad dos Aurelianos. Estava ele, nesse vórtice temporal com La Santa Muerte. Me parece que oferecia à ela a sua criança ou pelo menos fazia alguma iniciação. Fumava um cigarro, desses malborão filtro vermelho e passava a mão na cabeça da criança. Ele fumava o cigarro, dentro de um mercado, com uma tranquilidade e com uma temporalidade ritual. Não entendi como seus tragos duravam tanto e, ainda, como ao sai deixou metade do cigarro no altar de La Santa Muerte.
      O altar era uma mini-capela. Tinha um esqueleto no tamanho de um homem com as insígnias que caracterizam La Santa Muerte. Ela estava vestida de branco, como uma noiva, tinha a balança e uma cruz ao fundo com uma serpente no lugar de Cristo. O fundo da capela era azul com algumas estrelas desenhadas, frente ao fundo estava La Santa Muerte e frente a ela havia uma cerca. Nessa cerca eram colocadas frutas, bebidas e cigarros. Foi nesse lugar que o homem, de poucas palavras e olhares, colocou o cigarro que já era uma metade por acabar-se. Saiu, tão ensimesmado quanto chegou. Saia de si somente para lançar uns olhares negando os olhares dos demais. A sua esposa foi simpática, saiu e sorriu.
         A outra coisa que me atraiu o olhar foram os dizeres. Na parte da frente da capela-altar estava escrito Mi Niña Blanca. Achei tão bonito e tão carinhoso; é muito amor! Essa coisa de temor e receio ao ver um sagrado materializado em esqueleto passou. Ali meu olhar se alargou um pouco e percebi que o problema com a morte não é dos mexicanos, mas meu. Sou eu quem tenho o medo de encarar o esqueleto. Depois de alargar o olhar, pensei: da mesma forma que se ama a vida deve se amar a morte. Aqui a morte é amada e, preza-se para que seja tão boa quanto a vida.
       O culto de La Santa Muerte é muito peculiar. Ele mistura coisas das mitologias astecas e maias, em especial, apropria-se dos cultos das divindades antigas para suprir esse vazio que o cristianismo deixou. Vejam bem, Jesus não morreu, ele ressuscitou e a esperança de todo cristão é que ressuscite também. Mesmo que a pessoa morra, há uma crença em um retorno e em um reencontro quando ocorrer a ressurreição e os justos se levantarem dos túmulos e #partiucomjesus! Aqui essa crença na ressurreição, ao que me parece, não supre o aparato mítico e religioso das demais crenças, na real, os espanhóis não foram tão fodas assim e não tiveram tanto poder. A relação com a morte, penso, é um desses núcleos de resistência e poder das tradições mais antigas daqui.
       Ao mesmo tempo, La Santa Muerte tem códigos cristãos. Até pouco tempo muitos católicos cultuavam La Santa Muerte vendo-a como uma Virgem, similar à Nossa Senhora de Fátima, de Conceição, Aparecida... A igreja católica fez o maior fuzuê aqui, rolou uma campanha pesada mostrando que La Santa Muerte não tem nada a ver com Maria e, tcharam, é coisa do tinhoso! Muitas pessoas guardavam o santinho dela na carteira junto com algum outro santo. Porém, depois dessa campanha de segregação e negação de La Santa Muerte muita gente a vê como um culto satânico ou como pecado. 
         Enquanto o homem ensimesmado estava iniciando a sua criança, passou uma mulher com um filho e disse; " Tá vendo, isso é pecado!" Pobrecita da criança, perdendo um espetáculo lindo por causa do cristianismo.
         Há também mais um aspecto do culto, que não é dos mais tranquilos. Muitas pessoas que o realizam fazem parte do narcotráfico. Penso que é uma coisa ao mesmo tempo muito saudável e muito patológica. Ao mesmo tempo que pensam que a morte tem que ser tão boa como a vida, o que eu acho incrível, convivem bastante com a morte de uma forma muito agressiva e voraz; pedem uma boa morte porque sabe da crueldade e da violência que há nos códigos do narcotráfico. Bom, a coisa é tão pesada quanto o tráfico no Brasil e as formas de morrer são rodeadas de requintes de crueldade. La Santa Muerte exerce o papel mítico de combate à violência que os próprios homens são capazes de realizar.
        E, para encerrar, é um culto realizado na periferia, por pessoas pobres. Desse modo há muitos motivos para ser negado pelo Estado e pelo cristianismo. É uma segregação social, uma marginalização dos pobres acentuado pela associação pobreza-narcotráfico e, ainda, uma negação das culturas ancestrais por meio da imposição do cristianismo. Quanto a associação pobreza-narcotráfico é uma visão parcialmente muito embaçada porque os narcos tem muito, muito poder aqui. Em um documentário muito bom chamado Narco Cultura foram mostrados alguns cemitérios dos narcotraficantes que são verdadeiros túmulos de um rolê ostentação, enterram as pessoas com bens materiais, por exemplo, carros. Então, essa assimilação entre La Santa Muerte com pobreza é um pouco rasa, principalmente, quando um dos aspectos do seu culto é dar fortuna a quem a cultua - e muitos conseguem.
        Por fim, termino com mais um dos dizeres da capela-altar. Não preciso me ater muito a ele e explicar algo, pois por si só faz todo sentido. " No temas a donde vayas porque haz de morir donde debes."
          
      


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